terça-feira, 18 de agosto de 2020

Amar e servir: um legado de vida

Sempre escrevi muito sobre os ensinamentos que meu avô Luiz me deixou. Hoje vai ser diferente!

Hoje, 19 de agosto, é um dia especial! Como todos os dias são especiais por algum motivo que às vezes nos escapa. Mas este é um dia de fé, amor, firmeza e vontade de servir e mudar as coisas! Hoje é um dia especial para quem faz e fez da vontade de servir ao próximo um lema de vida.

AMAR E SERVIR A IGREJA FIRMES NA FÉ!

Em tempos de tanta polarização, de tanto ódio que parece inundar redes sociais - e aqui vale lembrar que elas sempre foram feitas para unir e não desagregar - de tanta dor e tristeza pelas vidas perdidas nessa pandemia, em tempos difíceis a lembrança do amor e da fé são sempre motivo de muito alegria! 
E hoje são 56 motivos para celebrar. Fazem 56 anos que 80 pessoas se uniram pelo bem, pela caridade, pelo amor de Cristo na fé e na irmandade da Congregação da Doutrina Social Cristã da cidade de Alto Longá no Piauí!



Eu confesso, até para não cometer qualquer pecado em momento tão solene, que nunca fui muito da igreja. Verdades podem ser interessantes e me pergunto agora porque então celebrar 56 anos de uma congregação? Eu nunca fui de ir à igreja mas minhas avós sempre foram. E eu, vez ou outra de férias, as acompanhei na reza semanal quando estava com elas. Adoro os rituais, os fazeres e os saberes da fé. Mas mais ainda tenho um carinho danado por esse nosso Senhor Jesus Cristo tão esquecido nos tempos atuais e tão necessitado de nossas lembranças.

Então entendo que hoje é obrigatório celebrar esse aniversário para lembrar do amor! O amor, o trabalho em prol dos mais necessitados, a caridade, a fé e tudo que une e agrega que precisa ser lembrado em tempos difíceis. E vivemos tempos difíceis! Já são mais de 107 mil vidas perdidas no Brasil. No amado Piauí, da minha maravilhosa vó Osima, já são mais de 1600 pessoas que perderam a vida e mais de 65 mil que ficaram doentes. Amor e fé são essenciais quando a vida sofre tanto, quando a esperança se abala, quando a dor aflige. Tempos difíceis pedem remédio simples: AMAR E SERVIR...

Talvez, se nos lembrássemos mais de tudo isso, as coisas pudessem ficar mais leves nesse momento difícil. E foi por isso que resolvi escrever e dizer com todo amor e carinho que carrego no coração as palavras que tantas vezes minha avó, Osima Rodrigues Bacelar de Miranda, repetiu: 
AMAR E SERVIR A IGREJA FIRMES NA FÉ!

O lema da Congregação da Doutrina Social Cristã uniu minha avó e aquelas outras 79 pessoas que juntas criaram essa congregação naquele difícil ano de 1964. Verdade que não tínhamos uma pandemia, mas tinha a fome, a miséria e as dores do sertão que minha avó junto àquelas pessoas queria ajudar a amenizar.

Amar e servir eram mais que palavras bonitas. Amar e servir eram e ainda são o rejunte, o cimento, a cola, o elo, a conexão entre as pessoas que fazem a Congregação da Doutrina Social Cristã de Alto Longá. Minha avó Osima era uma das 80 pessoas que fundaram a congregação em 19 de agosto de 1964 e foi sua primeira vice-presidente. Hoje a congregação segue os caminhos da minha avó sob a direção cuidadosa da atual presidente Angelina Fernandes da Silva Moraes. Eu não conheço de perto, no dia a dia o trabalho que fazem, tenho apenas as memórias das palavras carinhosas da minha avó: "o bem minha filha, a gente sempre quer fazer o bem." O objetivo dessas mulheres que sempre fizeram e fazem a congregação era e ainda é um só: servir com amor, fé e dedicação aos trabalhos sociais da igreja fazendo pelo outro o bem que Cristo sempre ensinou.
Minha avó homenageada por congregadas nos 50 anos da congregação


Minha avó celebrando 50 anos da congregação

Minha avó no meio das congregadas

Amar e servir, palavras que eram para minha avó não um lema mas a própria essência da vida! A história da minha avó é a história da mulher sertaneja que ama a família a vida, as outras pessoas sem qualquer distinção e quem tem fé, muita fé. A minha avó era puro amor e acolhimento, algo que permanece vivo nas mulheres que ainda insistem em fazer o bem sem olhar a quem como Jesus ensina.
O pão compartilhado, o amor dividido, os sonhos realizados... 56 anos de trabalho, amor e fé, tudo o que hoje precisa ser resgatado!

Por isso resolvi fazer esse texto não apenas para dizer parabéns à Congregação da Doutrina Social Cristã de Alto Longá no Piauí, mas principalmente para resgatar no meu coração os valores que minha avó Osima carregou na vida como sua própria essência e sua azão de viver: AMAR E SERVIR! E, usando as palavras de Gilberto Gil, na fé que a fé não costuma falhar!

quinta-feira, 16 de março de 2017

Brincadeira de criança, como é bom...




Quando brincar deixa de ser uma simples brincadeira é hora de os adultos repensarem o seu papel. E aqui vale também pensar na sua contribuição para a construção da sociedade. Em pleno mês de março é fundamental que possamos discutir o que é brincar e porque não devemos moldar tudo em brincadeiras de menino e de menina.

Estamos mesmo em um importante momento para falar sobre brincadeiras. Brincar, segundo o dicionário Aurélio é "divertir-se, recrear-se, entreter-se, distrair-se, folgar", também pode ser "entreter-se com jogos infantis", ou seja, brincar é uma realidade de nossas vidas e para as crianças é uma importante contribuição para a formação do sujeito.

Uma criança, é antes de tudo uma criança. Livre, aberta e com todas as possibilidades de preencher seus espaços e sua história. O determinismo de tão cedo tirarmos da criança a capacidade de aprender e apreender informações e contextos de todas as possibilidades é também o desperdício da oportunidade. A brincadeira é chance que a criança tem de experimentar, de cultivar e de aprender a entender o mundo, a realidade e todas as suas diversas possibilidades.

Assim, quando um menino não pode brincar de boneca ele perde a oportunidade de aprender a ser um pai muito melhor, perde a chance de aprender a cuidar. Uma menina que não pode brincar de carrinho perde a chance de aprender mais sobre carros, velocidade, trânsito e muito mais. Quando uma criança não pode brincar de algo aprende ao mesmo tempo que não há naquele universo espaço para ela do mesmo modo que perde a chance de construir outras possibilidades para a sua história.

Sabemos que o desenvolvimento infantil traz momentos em que os grupos se definem tão claramente que um chega a não gostar nada da presença do outro. Meninos se juntam com meninos e vice-versa. Esse processo natural faz parte do desenvolvimento e é responsável por auxiliar a criança na avaliação e construção do próprio eu. No entanto o desenvolvimento também envolve descobrir o que é ou não agradável para cada um. Por isso escolher brincadeiras e construir seus próprios processos cognitivos é importante para a criança desenvolver o senso criativo e a capacidade de melhorar sua interação social. Ao fecharmos essas portas com nossa delicadeza em definir do que uma criança deve ou não brincar tiramos dela a própria chance de se entender e se construir.

Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina aponta que em um universo de crianças de 4 a 6 anos a tendência maior é que as brincadeiras aconteçam com nichos específicos e delimitados: meninos com meninos e meninas com meninas. Do mesmo modo, quando tendem a escolher livremente meninas buscam a praticidade e meninos a fantasia e o relacionamento social com os pares. Elas brincam de boneca, de casinha, de beleza e de construir coisas. Eles são super-heróis, brincam de carrinho, helicópteros, bombeiros, voam e lutam incessantemente. Do mesmo modo, quando se juntam meninos e meninas as relações sociais e as brincadeiras que remetem a fantasia ganham outros contornos. A pesquisa também apontou que meninos tendem a ser mais rígidos do que meninas nas brincadeiras tidas como do contexto masculino. Ninguém nasce machista, as pessoas se tornam e brincar é o primeiro lugar em que aprendem.



A construção de uma sociedade mais justa e igualitária começa não apenas na mudança cultural que precisa acontecer, começa primeiramente na nossa capacidade de permitir que as crianças livremente construam seus próprios conceitos e suas próprias histórias. Aqui, no nosso mundo de mães, pais, tios, tias, irmãs, irmãos, padrinhos, madrinhas; devemos ser não formadores de um adulto, mas auxiliares para o crescimento das pessoas. Gente é pra brilhar, em qualquer idade, de qualquer tamanho e em todo lugar.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Quanto vale uma vida?!

Sinceramente ao ver a capa da revista VEJA dessa semana fiquei estarrecida! Qual país sério tem tão alarmantes índices de violência no trânsito? Precisei de uma semana para conseguir elaborar o assunto. O que mais me assustou foi buscar nas minhas memórias os caminhos para me manifestar sobre o tema. Sim, fiquei chocada e muito triste ao me lembrar de um texto que escrevi há alguns anos quando uma amiga muito querida - Maika Ramalho Greve - perdeu os dois irmão e um sobrinho em um acidente de trânsito na cidade de João Pessoa.
Capa da revista semanal Veja que trouxe matéria sobre violência no trânsito.
Na verdade falar em acidente é extrema bondade minha, porque o que aconteceu foi na verdade um crime bárbaro, quiçá um triplo homicídio qualificado e com motivo torpe - brincar de roleta russa nos semáforos vermelhos pode se enquadrar em motivo torpe, não?! E o que mais me espantou foi perceber que o texto continua estupendamente atual. Mudamos a lei de trânsito, tornamos crime doloso os acidentes quando o motorista assume o risco do acidente (dirigir embriagado, em alta velocidade e/ou de maneira perigosa), mas o principal não mudou: os valores do brasileiro que continua se achando o máximo atrás de um volante.
Sinceramente é inaceitável um adolescente de 12, 13, 14, 15 anos dirigir com o pai permitindo isso, como foi notícia essa semana. É inaceitável que uma pessoa ache natural furar sinal vermelho só porque está com pressa ou porque quer testar os pardais. E o que dizer das belezuras que estacionam em pista dupla e saem para as compras achando-se donos da rua! Verdade seja dita, não nos falta lei, o que nos falta é moral, o que nos falta é coerência, o que nos falte é respeito.
Isso me fez voltar a questionar e trazer de volta o texto que escrevi em maio de 2007, que está mais atual que nunca:
Quanto vale uma vida?! Hoje, por mais incrível que pareça, me peguei pensando exatamente nisso. Quando nos damos conta de que em pleno século XXI somos obrigados a pensar e repensar o valor de uma vida, é porque talvez seja a hora de rever os valores que modulam nossa sociedade.
Uma grande amiga perdeu, nessa madrugada, dois irmãos e um sobrinho. Shuka, Matheus e Antônio fazem parte do rol de vítimas que não pára de crescer. Junto com eles toda a família entra no mesmo grupo. O custo da vida deles foram alguns goles de bebida alcoólica a mais, consumida por aquele que antes de matá-los era mais uma pessoa em busca de alegria e diversão! Aos 22 anos de idade, João Paulo Guedes Meira matou três pessoas com uma única arma e um único golpe: dirigindo em alta velocidade, embriagado e desrespeitando o sinal vermelho provocou a morte de uma família inteira, mas é certo que ele também perdeu algo importante ontem: não perdeu um pai, nem um filho. Ele perdeu a serenidade, a dignidade e o respeito por si, mesmo que por instantes.
E quando pensamos em uma violência assim, precisamos entender que a vida humana, mesmo que de pessoas que sequer conhecemos, e também a nossa e das pessoas que amamos, vale muito mais que uma caixa de cerveja ou uma garrafa de whisky. E porque muitas vezes esquecemos disso quando saímos com os amigos para uma balada? Porque muitas vezes jovens sem condição de caminhar entram nos seus carros, no meio da madrugada, dirigindo em alta velocidade depois de beberem o suficiente para dormirem por dois dias seguidos e ainda acordarem de ressaca? Porque os pais permitem isso e porque ainda ensinam isso aos seus filhos? Essas são outras perguntas que me fiz hoje! Não sei ao certo a resposta para muitas dessas perguntas que já fiz até agora. Não sei o que leva uma pessoa a dirigir quando não tem condições para isso. Não sei o que leva uma pessoa a andar acima da velocidade e “furar” sinais vermelhos. Não sei o que leva alguém a dar tão pouca importância à vida a ponto de arriscar a sua e a dos outros com desrespeito, descuido e arrogância. Não sei como podem continuar suas vidas as pessoas que perderam pais e filhos em um acidente como esse. Não sei como pode continuar sua vida quem matou outras três pessoas em um momento de desrespeito e arrogância movido pelo excesso de álcool.

Imagem da campanha "Não foi acidente"
Mas existe uma outra questão que merece ser levantada em uma discussão como essa. A violência no trânsito brasileiro, na maior parte das vezes provocada por excesso de álcool, me obriga a pensar no porque ainda aceitamos as campanhas publicitárias de cerveja e outras bebidas alcoólicas que mostram jovens bonitos conduzindo veículos (eles chegam dirigindo seus carros, bebem todas nas praias onde vemos lanchas e carros), aumentando a virilidade e a auto-aceitação em virtude do álcool?
Não se trata de dizer que o álcool é ruim. De forma alguma, eu mesma adoro sair com os amigos para uma cerveja, adoro receber os amigos em casa para um bate-papo com vinhos, cervejas e outras bebidas. A questão é os limites que precisam existir. Os adolescentes bebem cada vez mais cedo e quando completam 18 anos, idade de aprender a dirigir, muitos já estão carregados da imagem de seus próprios pais e amigos dirigindo embriagados e da imagem publicitária mostrando apenas o lado bom do álcool. O que falo é da necessidade de se mostrar os dois lados da questão. Não se trata de proibir, que isso não adianta, mas de pensar que existe um dano social sendo causado e que a publicidade, ao invés de ajudar, tem atrapalhado a reduzir esse dano.
Já nos rebelamos contra os maus provocados pelo cigarro, mesmo sabendo que eles são menores do que aqueles provocados pelo uso inconsequente de álcool. Muitas pessoas podem dizer, o que é isso?! Você está esquecendo que o álcool só mata quando em excesso? O cigarro também! Que o álcool só tira a consciência depois de grande quantidade? Maconha também! Que só alcoólatras precisam de cuidado pois perderam o respeito por si e pelos outros? Esse caso mostra o contrário.
É chegado o momento de repensar o consumo e a publicidade do álcool, de repensar leis de trânsito, de repensar os valores humanos que devem permanecer em nossas vidas. É chegado o momento de entendermos que a vida humana vale muito mais que uma caixa de cerveja ou um relógio. A vida
humana vale muito mais que nossa arrogância de nos acharmos superiores quando entramos em um carro da moda. É chegado o momento de entender que muitas vezes "NÃO É ACIDENTE". E eu resolvi escrever isso hoje para dizer copiando o grande Milton Nascimento que “não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver. E não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal...”

Para quem quiser saber mais sobre o que escrevi aqui acesse a revista Veja e o site da campanha Não foi acidente e o link para a seguir http://www.gabrielasoudapaz.org/memorial/467-Francisco-de-Assis-Guerra-Ramalho.htm.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Os brasilienses e um pouco de mim

Imagem que retrata o prédio do poder legislativo
Brasília é cidade de muitos encantos. Alguns não são tão fáceis de perceber como meus olhos e sorrisos, mas outros são ainda mais fáceis, como as flores da seca. É engraçado pensar na minha cidade como este lugar onde as pessoas parecem frias, onde tudo parece distante e aonde quem chega se sente perdido e sozinho. Claro que nada disso, nem a fama nem a cama dela, foi construído do nada. Tudo tem fundamento e embasamento que a sociologia, a história e até a geografia podem explicar muito bem. Brasília e suas almas - os que aqui nasceram e os que aqui vivem a muito tempo - são produtos da História. 

Eu vou me aventurar um pouquinho nesses campos e tentar com uma breve explicação mostrar um pouco mais da minha cidade e do meu povo para vocês. os sociólogos, antropólogos, historiadores e geógrafos me perdoem as indiscrições que eu possa vir a cometer na ânsia de me defender das acusações! 

Vamos começar pela criação da cidade: Brasília nasceu de um sonho, foi construída por homens e mulheres vindos das várias partes do país, que não se conheciam e que vieram no desespero de terem sentido e futuro. Essas pessoas que nunca tinham se visto antes, de repente, deveriam se juntar e construir uma cidade e fazer dela o sonho de muita gente. Essa gente que não se conhecia devia fazer serviço que grandes amigos fazem. O resultado disso é que aqui o trabalho vem sempre em primeiro lugar. E aqui muitos dos nossos amigos serão encontrados justamente no trabalho!

Foto que mostra o anoitecer sobre a Catedral de Brasília e as grandes amplitudes da cidade.

Um outro exemplo é a relação entre clima e relacionamentos: Brasília foi construída no meio do planalto central, onde a estação da seca é a mais longa do país, razão pela qual aprendemos a viver nela – a seca. Essa seca provoca reações fisiológicas das mais estranhas (dores, cansaço, nervosismo e angústia) e consequentemente afeta a nossa incrível, sim incrível, habilidade para nos relacionarmos. Isso porque a seca parece secar também os corações. Mas basta apenas uma pequenina gota líquida (seja dos fluídos corpóreos, seja da chuva ou das bebidas) para que a gente se derreta e se mostre com todo o esplendor e com toda a nossa beleza, assim como as nossas flores e nossas árvores. Normalmente, salvo em raras exceções, é preciso muito pouco para que os brasilienses se encantem e encantem o mundo.

Ainda não concorda com o que afirmei sobre a História ser responsável pela fama dos brasilienses? Tudo bem, vamos a mais um argumento: toda a história da cidade tem como base o fato de que a capital precisa ficar no centro do país, mas se olharmos para os quatro cantos do mundo perceberemos que muitas vezes as capitais estão não no centro, mas nos pontos que foram primeiramente habitados. A razão real da mudança não está expressa nos documentos, mas revelada na nossa essência. Os brasilienses por natureza gostam de política, mas não muito de reconstruí-la. Raramente temos grandes manifestações que nascem na cidade e na maior parte das vezes nossas revoltas nascem no brasil, não na cidade. O resultado prático é que temos muitos lugares e espaços para conversas amenas e poucos para grandes debates. Nossos bares não respiram, mas transpiram política.

Para completar falta ainda falar do impacto da geografia na nossa essência. Nossa fama de frios e distantes e a relação disso com nosso relevo. Brasília é a cidade dos horizontes, tudo é muito longe, tudo é muito amplo e sempre o que vemos para todos os lados é o horizonte e a amplitude isso porque estamos em pleno planalto.
Um retrato do infinitoComo tudo nessa cidade é muito longe aprendemos a usar muito o carro, vamos de carro a todos os lugares e com isso restringimos os encontrões e esbarrões no meio da rua. O resultado disso é que vivemos em nossos mundos particulares, distantes como o são os lugares aqui, frios como o horizonte do Planalto Central.

Mas também, como o horizonte que no pôr-do-sol aquece a alma dos amantes, nós damos belíssimos espetáculos com os braços abertos prontos a abraçar todas as almas humanas. Brasília é isso, um conjunto histórico de singularidades que a fazem uma cidade bela e especial e o seu povo único.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Violência contra as mulheres: história de uma vida!

É difícil entender um juiz que usa, como argumento para desqualificar um crime cometido por alguém, o fato de que a vítima não pode ser vítima apenas porque tem condições de se sustentar. Então isso significa que se eu estiver andando na rua e for espancada; o fato de ter um bom salário permite isso? Já não é de hoje que a luta para garantir a integridade e o respeito aos direitos da mulher é quase inglória. É, não concordo com a sentença que liberou Dado Dolabella de responder ao crime cometido. E os machistas nem precisam me perdoar, é crime sim o que ele fez. Mas não é desse crime contra a mulher que falarei hoje.

Imagem retrata símbolo do trânsito e um grito pelo fim da violência contra as mulheresA violência pesa quando menos esperamos. O mundo vive uma epidemia. Estudos apontam que pode chegar a um terço o número de mulheres que é ou já foi vítima de violência sexual (mais de 1 bilhão de mulheres e no Brasil esse número supera 29 milhões de mulheres). Desses crimes, pelo menos 70%[1] são cometidos por pessoas de confiança das vítimas, muitas vezes os próprios maridos, namorados, pais, irmãos, tios... Nesse contexto é assustador que a única preocupação, de um segmento importante de pessoas, gire em torno dos filhos que serão gerados dessas violências.
Sinceramente quando uma mulher é vítima de violência sexual ela não pensa nos filhos que podem vir desse crime, nas doenças que seu corpo pode receber, nem em anotar a placa. Toda a preocupação da vítima de violência sexual é se sentir limpa e viva de novo depois de tudo! E se vai ter pílula do dia seguinte, coquetel anti-HIV, vacinas mil e polícia no meio que seja o mais rápido possível, como quer a lei. E se vai ficar escondida no medo da humilhação maior de ser desrespeitada – porque o short estava curto demais, porque é muito bonita e se fosse feia não acontecia, porque ele jamais faria isso sua mentirosa, porque isso ou aquilo – que saiba viver a dor do esconderijo perdido onde entrar. Para quem não sabe como é a dor do abuso sexual, meu desejo é que nunca descubra; para quem sabe como é essa dor, meu desejo é que se redescubra.
 
Vocês devem estar se perguntando por que escrevo esse texto. Revolta! É doloroso, para quem luta pelo fim da violência contra as mulheres, ver que ainda somos tratadas como máquinas de parir e que o mundo acredita que temos condições de no momento do crime sexual decidir se queremos ou não a vida que sequer sabemos se existe em nós. Isso não é hipocrisia, é maldade. E por mais violento que o mundo seja é extremamente acalentadora a sensação de descobrir pessoas que com coragem seguem caminhos que nos fazem repensar. Hoje vou contar uma história assim, de perdão e vida.
 
Confesso que não me cabe entrar em detalhes que nada acrescentam. Felizmente minha personagem não precisa que eu revele seu nome ou idade. Ela pode ser sua vizinha, sua colega de trabalho, até mesmo sua filha ou irmã. Ela pode ser a mulher que você nunca viu e que apareceu estampada nas páginas policiais um dia. Ela pode ser qualquer uma de mais de um bilhão de mulheres vítimas de violência sexual, mas certamente nunca será uma qualquer. Lembram-se do redescobrir que desejei lá em cima. Ele me apareceu assim, como um anjo, um sopro de vida. E como todos sabem que quem conta um conto sempre aumenta um ponto, não se chateiem com os pontos suprimidos ou os incluídos.
 
Ela me pediu que escrevesse com carinho. Revelou tudo que havia acontecido e deixou claro que nada daquilo importava mais. Verdade seja dita, não parecia a mulher que era, mas a menina cheia de vida e redescoberta que me contava um conto. Ela deixou claro que quem tinha cometido o crime já estava morto e sequer tinha lhe pedido desculpas. Com os olhos e a alma escancarados e a suavidade da criança em dúvida me perguntou se era certo machucar alguém e nem pedir desculpas. Nada respondi.
 
Depois, como se tudo já não bastasse, me perguntou por onde deveria começar. Eu sorri e disse: você já começou. Ela gargalhou, jogou a cabeça prá trás e disse suavemente: “não, nada disso importa. O que realmente importa é que eu quero ser feliz!” Rasguei tudo o que já havia anotado e recomecei aquela história.
 
“Algumas histórias não precisam de nomes, nem de datas, e sequer de fatos” ela disse já com lágrimas nos olhos. “Esta é uma delas. Eu nasci para ser a alegria de papai e mamãe. Sempre fui muito manhosa e teimosa. Tinha mania de exigir tudo a tempo e a hora, atenção integral desde bebê. Aos cinco anos comecei a ser abusada sexualmente por alguém a quem dediquei todos os sentimentos possíveis (amor, desejo, alegria, fé, esperança, amizade, carinho, afeto, mágoa, raiva, ódio e por fim, o principal, amor de novo). Aprendi com muita dificuldade a me defender. Engordei porque acreditava que sendo feia ninguém iria me machucar e eu estaria protegida. Tolinha! Só hoje entendo que a beleza não está na carcaça do lado de fora.” Ela falava quase sem respirar e eu engatava perguntas que pareciam vir sem pedir licença. “Sabe quando me fazem essa pergunta eu não sei se rio do absurdo ou se choro com a sinuca de bico que me colocam. Não eu não saberia dizer se seria capaz de abortar uma criança, ainda que ela fosse fruto de um estupro, mas agradeço a Deus todos os dias por nunca ter precisado tomar essa decisão. Eu lhe garanto que durante todos os anos de dor e humilhação isso jamais me passou pela cabeça. E depois com tanta água sanitária e desinfetante duvido que algum espermatozoide tenha se arriscado a sobreviver. Esse tipo de situação aonde o mundo resolve jogar as mulheres é muito ofensivo. Eu não vou dizer que devemos abortar uma criança fruto de estupro, mas pergunto por que essas mesmas pessoas mandam suas filhas tomarem a pílula do dia seguinte quando elas se esquecem de usar camisinha no sexo consensual. Gente é um bicho muito esquisito, melhor a hipocrisia né?!“ ela falava e mexia nos cabelos. Mesmo brava, demonstrava uma enorme vontade de viver.
 
“O importante é falar de hoje! O passado não importa mais. Quantos banhos eu tomava entre o fato e a chegada dos meus pais em casa, ou quantas vezes tentei me matar para fugir daquilo. Porque meus pais não acreditaram em mim ou porque isso aconteceu. Tudo bobagem infinita. Hoje nada disso interessa. Eu cheguei num ponto que a carcaça que eu construí para me proteger parece que se quebrou sozinha. Eu me guardei tanto nesse monte de banha e fantasia que hoje já me pergunto até se estou mesmo aqui“. Depois dessas palavras a gargalhada sumiu e deu lugar a uma testa firme e um olhar determinado. “Depois de muito tempo vivendo um único papel ficamos cansadas” ela afirmou sem pestanejar. E diante da minha inquietação prosseguiu “Se até um Papa pode cansar do seu papel porque eu não posso? Quer saber, ser vítima esgota a gente! E é sobre isso que quero falar, o cansar de ser a eterna vítima de uma história. Pergunto: quem são os personagens mais chatos de uma novela?! As Mocinhas e os mocinhos, claro! Ninguém aguenta a choradeira que não acaba e os problemas que nunca se resolvem. Eu não me aguentei também. Sabe cheguei a uma simples conclusão: seguir adiante é sempre uma questão de fé. Acreditar que tudo vai dar certo e seguir sem saber aonde iremos é fé pura. Tudo o que sempre o que planejei sobre isso, não alcancei. Queria ser invisível e olha aí; minha gargalhada, meu tamanho e minha alma não deixam. Então porque não ser exatamente quem sou: feliz, corajosa e determinada?! Bem melhor que vítima, certo?!” Suas perguntas não pediam respostas e não me atrevi a revelar isso a ela.
 
“Nesse tempo que fiquei escondida, fugi da intimidade, do compartilhamento e da alegria de construir vidas em comum. Perdi tempo, abandonei pessoas, fugi de responsabilidades que eram minhas e no fim o que me restou?! Apenas a mágoa. Resolvi retomar o resto e abrir mão dela. É muito difícil saber o que é pior: ser vítima do que não sabemos ou culpada de nossas escolhas. E eu tinha que fazer as minhas: viver ou morrer? Afundar na dor do passado ou redescobrir meu melhor? Sinceramente não quero ressuscitar ninguém, tampouco quero ressuscitar mágoas e dores que já estão bem enterradas, quero apenas dizer que sei quem eu sou e o que fiz para chegar aqui. Depois de tanto ser vítima, resolvi agir pra não me transformar em algoz de mim mesma. Resolvi perdoar.” As perguntas pulavam na minha mente. “O caminho mais fácil?!” ela retrucou soltando uma gargalhada. Eu não tive dúvidas de que tinha feito uma pergunta imbecil.

“Olha, minha cara, não existe caminho fácil quando escolhemos a vida! Existem caminhos únicos. Alguns são mais tortuosos, outros são mais solitários e mais tantos são mais bonitos, mas ninguém pode afirmar que são fáceis. Quem procura facilidade pode pedir prá ser parede na próxima chance – se houver.” E sua gargalhada parecia oxigênio puro vindo do coração. Senti vibrar sua energia e mais que rápido engatei a última pergunta que me vinha à mente. Ela sorriu. Depois me olhou no fundo dos olhos e respondeu sem titubear: “Perdoar era minha única saída, meu único caminho, minha última chance! E não tenha dúvidas de que cada segundo dessa história toda não faria o menor sentido sem o perdão. Podemos passar uma vida inteira chorando a dor de uma ferida que não temos como fechar ou podemos chorar em cada casquinha retirada até que ela se feche sozinha, com tempo e mertiolate. No fim podemos olhá-la e nem lembrarmos o que aconteceu, mas sempre sentiremos a dor que pode ser bem maior quando não sabemos o motivo. Ou podemos sentir a dor sabendo o que aconteceu e ainda assim sermos muito felizes porque aquela ferida nos ensinou como um machucado cicatriza. Esse é o princípio do perdão, esse é o princípio do amor, esse é agora o meu princípio de vida! Agradecer e perdoar são minha única chance de seguir em frente, é minha escolha de fé”.

Eu não tinha mais perguntas. Fiquei ali, parada, olhando-a profundamente e ao final entendi tudo. Para além de toda a violência imposta (muito maior que apenas sexual), ela escolheu viver. Aquela mulher sofreu abuso sexual por quase quinze anos, não teve o apoio da família como queria. Por várias vezes encharcou-se de álcool, água sanitária e desinfetante. Outras tantas vezes ela passou noites em claro sentada na porta do quarto para que seu abusador não entrasse sorrateiro na madrugada. Depois de tudo, viu o criminoso morrer antes de ter se arrependido. Sentiu-se infinitamente culpada por um tempo que nem mesmo conseguia contabilizar. Para fugir das dores ela fugiu de si mesma e só depois de muito lutar resolveu romper um ciclo que parecia infinito e se libertar. Ainda falta muito caminhar, mas ela não tem medo do caminho, nem das pedras que ele terá. Seu único medo é não perdoar.

Para saber mais sobre violência contra mulheres conheça a campanha “UNA-SE pelo fim da violência contra as Mulheres da ONU”.
Documentário Canto de Cicatriz de Laís Chaffe sobre abuso sexual


[1] Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).