É difícil
entender um juiz que usa, como argumento para desqualificar um crime cometido
por alguém, o fato de que a vítima não pode ser vítima apenas porque tem
condições de se sustentar. Então isso significa que se eu estiver andando na
rua e for espancada; o fato de ter um bom salário permite isso? Já não é de
hoje que a luta para garantir a integridade e o respeito aos direitos da mulher
é quase inglória. É, não
concordo com a sentença que liberou Dado Dolabella de responder ao
crime cometido. E os machistas nem precisam me perdoar, é crime sim o que ele
fez. Mas não é desse crime contra a mulher que falarei hoje.
A violência
pesa quando menos esperamos. O mundo vive uma epidemia. Estudos apontam
que pode chegar a um terço o número de mulheres que é ou já foi vítima de
violência sexual (mais de 1 bilhão de mulheres e no Brasil esse número supera 29 milhões de mulheres).
Desses crimes, pelo menos 70%[1] são cometidos por pessoas
de confiança das vítimas, muitas vezes os próprios maridos, namorados, pais,
irmãos, tios... Nesse contexto é assustador que a única preocupação,
de um segmento importante de pessoas, gire em torno dos filhos que serão
gerados dessas violências.
Sinceramente
quando uma mulher é vítima de violência sexual ela não pensa nos filhos que
podem vir desse crime, nas doenças que seu corpo pode receber, nem em anotar a
placa. Toda a preocupação da vítima de violência
sexual é se sentir limpa e viva de novo depois de tudo! E se vai ter pílula do
dia seguinte, coquetel anti-HIV, vacinas mil e polícia no meio que seja o mais
rápido possível, como quer a lei. E se vai ficar escondida no medo da
humilhação maior de ser desrespeitada – porque o short estava curto demais, porque é muito bonita e se fosse feia não
acontecia, porque ele jamais faria isso sua mentirosa, porque isso ou aquilo – que saiba viver a dor do esconderijo perdido onde entrar. Para quem
não sabe como é a dor do abuso sexual, meu desejo é que nunca descubra;
para quem sabe como é essa dor, meu desejo é que se
redescubra.
Vocês devem
estar se perguntando por que escrevo esse texto. Revolta! É
doloroso, para quem luta pelo fim da violência contra as mulheres,
ver que ainda somos tratadas como máquinas de parir e que o mundo acredita que
temos condições de no momento do crime sexual decidir se queremos ou não a vida
que sequer sabemos se existe em nós. Isso não é hipocrisia, é maldade. E por
mais violento que o mundo seja é extremamente acalentadora a sensação
de descobrir pessoas que com coragem seguem caminhos que nos fazem repensar. Hoje vou contar uma história assim, de perdão e vida.
Confesso que
não me cabe entrar em detalhes que nada acrescentam. Felizmente
minha personagem não precisa que eu revele seu nome ou idade. Ela pode ser sua
vizinha, sua colega de trabalho, até mesmo sua filha ou irmã. Ela pode ser a
mulher que você nunca viu e que apareceu estampada nas páginas policiais um dia.
Ela pode ser qualquer uma de mais de um bilhão de mulheres vítimas de violência
sexual, mas certamente nunca será uma
qualquer. Lembram-se do redescobrir que desejei lá em cima. Ele me apareceu
assim, como um anjo, um sopro de vida. E como todos sabem que quem conta um
conto sempre aumenta um ponto, não se chateiem com os pontos suprimidos ou os incluídos.
Ela me pediu
que escrevesse com carinho. Revelou tudo que havia
acontecido e deixou claro que nada daquilo importava mais. Verdade seja dita, não
parecia a mulher que era, mas a menina cheia de vida e
redescoberta que me contava um conto. Ela deixou claro que quem tinha cometido
o crime já estava morto e sequer tinha lhe pedido desculpas. Com os olhos
e a alma escancarados e a suavidade da criança em dúvida me perguntou se era
certo machucar alguém e nem pedir desculpas. Nada respondi.
Depois, como
se tudo já não bastasse, me perguntou por onde deveria começar. Eu sorri e
disse: você já começou. Ela gargalhou, jogou a cabeça prá trás e disse
suavemente: “não, nada disso importa. O que realmente importa é que eu quero
ser feliz!” Rasguei tudo o que já havia anotado e recomecei aquela história.
“Algumas
histórias não precisam de nomes, nem de datas, e sequer de fatos” ela disse já
com lágrimas nos olhos. “Esta é uma delas. Eu nasci para ser a alegria de papai
e mamãe. Sempre fui muito manhosa e teimosa. Tinha mania de exigir tudo a tempo
e a hora, atenção integral desde bebê. Aos cinco anos comecei a ser abusada
sexualmente por alguém a quem dediquei todos os sentimentos possíveis (amor,
desejo, alegria, fé, esperança, amizade, carinho, afeto, mágoa, raiva, ódio e
por fim, o principal, amor de novo). Aprendi com muita dificuldade a me defender.
Engordei porque acreditava que sendo feia ninguém iria me machucar e eu estaria
protegida. Tolinha! Só hoje entendo que a beleza não está na carcaça do
lado de fora.” Ela falava quase sem respirar e eu engatava perguntas que
pareciam vir sem pedir licença. “Sabe quando me fazem essa pergunta eu não sei
se rio do absurdo ou se choro com a sinuca de bico que me colocam. Não eu não
saberia dizer se seria capaz de abortar uma criança, ainda que ela fosse fruto
de um estupro, mas agradeço a Deus todos os dias por nunca ter precisado tomar
essa decisão. Eu lhe garanto que durante todos os anos de dor e humilhação isso
jamais me passou pela cabeça. E depois com tanta água sanitária e desinfetante
duvido que algum espermatozoide tenha se arriscado a sobreviver. Esse tipo de
situação aonde o mundo resolve jogar as mulheres é muito ofensivo. Eu não vou
dizer que devemos abortar uma criança fruto de estupro, mas pergunto por que
essas mesmas pessoas mandam suas filhas tomarem a pílula do dia seguinte quando
elas se esquecem de usar camisinha no sexo consensual. Gente é um bicho muito
esquisito, melhor a hipocrisia né?!“ ela falava e mexia nos cabelos. Mesmo
brava, demonstrava uma enorme vontade de viver.
“O
importante é falar de hoje! O passado não importa mais. Quantos banhos eu
tomava entre o fato e a chegada dos meus pais em casa, ou quantas vezes tentei
me matar para fugir daquilo. Porque meus pais não acreditaram em mim ou porque
isso aconteceu. Tudo bobagem infinita. Hoje nada disso interessa. Eu
cheguei num ponto que a carcaça que eu construí para me proteger parece que se
quebrou sozinha. Eu me guardei tanto nesse monte de banha e fantasia que hoje
já me pergunto até se estou mesmo aqui“. Depois dessas palavras a gargalhada
sumiu e deu lugar a uma testa firme e um olhar determinado. “Depois de muito
tempo vivendo um único papel ficamos cansadas” ela afirmou sem pestanejar. E
diante da minha inquietação prosseguiu “Se até um Papa pode cansar do seu papel
porque eu não posso? Quer saber, ser vítima esgota a gente! E é sobre isso que
quero falar, o cansar de ser a eterna vítima de uma história. Pergunto: quem são
os personagens mais chatos de uma novela?! As Mocinhas e os mocinhos, claro!
Ninguém aguenta a choradeira que não acaba e os problemas que nunca se
resolvem. Eu não me aguentei também. Sabe cheguei a uma simples conclusão: seguir
adiante é sempre uma questão de fé. Acreditar que tudo vai dar certo e seguir
sem saber aonde iremos é fé pura. Tudo o que sempre o que planejei
sobre isso, não alcancei. Queria ser invisível e olha aí; minha gargalhada,
meu tamanho e minha alma não deixam. Então porque não ser exatamente quem sou:
feliz, corajosa e determinada?! Bem melhor que vítima, certo?!” Suas perguntas
não pediam respostas e não me atrevi a revelar isso a ela.
“Nesse tempo que fiquei escondida,
fugi da intimidade, do compartilhamento e da alegria de construir vidas em
comum. Perdi tempo, abandonei pessoas, fugi de responsabilidades que eram
minhas e no fim o que me restou?! Apenas a mágoa. Resolvi retomar o resto e
abrir mão dela. É muito difícil saber o que é pior: ser vítima do que não
sabemos ou culpada de nossas escolhas. E eu tinha que fazer as minhas: viver ou
morrer? Afundar na dor do passado ou redescobrir meu melhor? Sinceramente não
quero ressuscitar ninguém, tampouco quero ressuscitar mágoas e dores que já
estão bem enterradas, quero apenas dizer que sei quem eu sou e o que fiz para
chegar aqui. Depois de tanto ser vítima, resolvi agir pra não me transformar em
algoz de mim mesma. Resolvi perdoar.” As perguntas pulavam na minha mente. “O caminho mais fácil?!” ela
retrucou soltando uma gargalhada. Eu não tive dúvidas de que tinha feito uma
pergunta imbecil.
“Olha, minha cara, não existe caminho
fácil quando escolhemos a vida! Existem caminhos únicos. Alguns são mais
tortuosos, outros são mais solitários e mais tantos são mais bonitos, mas ninguém
pode afirmar que são fáceis. Quem procura facilidade pode pedir prá ser parede
na próxima chance – se houver.” E sua gargalhada parecia oxigênio puro vindo do
coração. Senti vibrar sua energia e mais que rápido engatei a última pergunta
que me vinha à mente. Ela sorriu. Depois me olhou no fundo dos olhos e
respondeu sem titubear: “Perdoar era minha única saída, meu único caminho,
minha última chance! E não tenha dúvidas de que cada segundo dessa história
toda não faria o menor sentido sem o perdão. Podemos passar uma vida inteira
chorando a dor de uma ferida que não temos como fechar ou podemos chorar em
cada casquinha retirada até que ela se feche sozinha, com tempo e mertiolate.
No fim podemos olhá-la e nem lembrarmos o que aconteceu, mas sempre sentiremos a
dor que pode ser bem maior quando não sabemos o motivo. Ou podemos sentir a dor
sabendo o que aconteceu e ainda assim sermos muito felizes porque aquela ferida
nos ensinou como um machucado cicatriza. Esse é o princípio do perdão, esse é o
princípio do amor, esse é agora o meu princípio de vida! Agradecer e perdoar
são minha única chance de seguir em frente, é minha escolha de fé”.
Eu não tinha mais perguntas. Fiquei ali, parada, olhando-a
profundamente e ao final entendi tudo. Para além de toda a violência imposta (muito maior que apenas sexual), ela
escolheu viver. Aquela mulher sofreu abuso sexual por quase quinze anos, não
teve o apoio da família como queria. Por várias vezes encharcou-se de álcool,
água sanitária e desinfetante. Outras tantas vezes ela passou noites em claro
sentada na porta do quarto para que seu abusador não entrasse sorrateiro na
madrugada. Depois de tudo, viu o criminoso morrer antes de ter se arrependido.
Sentiu-se infinitamente culpada por um tempo que nem mesmo conseguia
contabilizar. Para fugir das dores ela fugiu de si mesma e só depois de muito
lutar resolveu romper um ciclo que parecia infinito e se libertar. Ainda falta
muito caminhar, mas ela não tem medo do caminho, nem das pedras que ele terá. Seu
único medo é não perdoar.
Para saber mais sobre violência contra
mulheres conheça a campanha “UNA-SE pelo fim da violência contra as Mulheres da ONU”.
[1] Dados
da Organização Mundial de Saúde (OMS).
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