É difícil
entender um juiz que usa, como argumento para desqualificar um crime cometido
por alguém, o fato de que a vítima não pode ser vítima apenas porque tem
condições de se sustentar. Então isso significa que se eu estiver andando na
rua e for espancada; o fato de ter um bom salário permite isso? Já não é de
hoje que a luta para garantir a integridade e o respeito aos direitos da mulher
é quase inglória. É, não
concordo com a sentença que liberou Dado Dolabella de responder ao
crime cometido. E os machistas nem precisam me perdoar, é crime sim o que ele
fez. Mas não é desse crime contra a mulher que falarei hoje.
Sinceramente
quando uma mulher é vítima de violência sexual ela não pensa nos filhos que
podem vir desse crime, nas doenças que seu corpo pode receber, nem em anotar a
placa. Toda a preocupação da vítima de violência
sexual é se sentir limpa e viva de novo depois de tudo! E se vai ter pílula do
dia seguinte, coquetel anti-HIV, vacinas mil e polícia no meio que seja o mais
rápido possível, como quer a lei. E se vai ficar escondida no medo da
humilhação maior de ser desrespeitada – porque o short estava curto demais, porque é muito bonita e se fosse feia não
acontecia, porque ele jamais faria isso sua mentirosa, porque isso ou aquilo – que saiba viver a dor do esconderijo perdido onde entrar. Para quem
não sabe como é a dor do abuso sexual, meu desejo é que nunca descubra;
para quem sabe como é essa dor, meu desejo é que se
redescubra.
Vocês devem
estar se perguntando por que escrevo esse texto. Revolta! É
doloroso, para quem luta pelo fim da violência contra as mulheres,
ver que ainda somos tratadas como máquinas de parir e que o mundo acredita que
temos condições de no momento do crime sexual decidir se queremos ou não a vida
que sequer sabemos se existe em nós. Isso não é hipocrisia, é maldade. E por
mais violento que o mundo seja é extremamente acalentadora a sensação
de descobrir pessoas que com coragem seguem caminhos que nos fazem repensar. Hoje vou contar uma história assim, de perdão e vida.
Confesso que
não me cabe entrar em detalhes que nada acrescentam. Felizmente
minha personagem não precisa que eu revele seu nome ou idade. Ela pode ser sua
vizinha, sua colega de trabalho, até mesmo sua filha ou irmã. Ela pode ser a
mulher que você nunca viu e que apareceu estampada nas páginas policiais um dia.
Ela pode ser qualquer uma de mais de um bilhão de mulheres vítimas de violência
sexual, mas certamente nunca será uma
qualquer. Lembram-se do redescobrir que desejei lá em cima. Ele me apareceu
assim, como um anjo, um sopro de vida. E como todos sabem que quem conta um
conto sempre aumenta um ponto, não se chateiem com os pontos suprimidos ou os incluídos.
Ela me pediu
que escrevesse com carinho. Revelou tudo que havia
acontecido e deixou claro que nada daquilo importava mais. Verdade seja dita, não
parecia a mulher que era, mas a menina cheia de vida e
redescoberta que me contava um conto. Ela deixou claro que quem tinha cometido
o crime já estava morto e sequer tinha lhe pedido desculpas. Com os olhos
e a alma escancarados e a suavidade da criança em dúvida me perguntou se era
certo machucar alguém e nem pedir desculpas. Nada respondi.
Depois, como
se tudo já não bastasse, me perguntou por onde deveria começar. Eu sorri e
disse: você já começou. Ela gargalhou, jogou a cabeça prá trás e disse
suavemente: “não, nada disso importa. O que realmente importa é que eu quero
ser feliz!” Rasguei tudo o que já havia anotado e recomecei aquela história.

“O
importante é falar de hoje! O passado não importa mais. Quantos banhos eu
tomava entre o fato e a chegada dos meus pais em casa, ou quantas vezes tentei
me matar para fugir daquilo. Porque meus pais não acreditaram em mim ou porque
isso aconteceu. Tudo bobagem infinita. Hoje nada disso interessa. Eu
cheguei num ponto que a carcaça que eu construí para me proteger parece que se
quebrou sozinha. Eu me guardei tanto nesse monte de banha e fantasia que hoje
já me pergunto até se estou mesmo aqui“. Depois dessas palavras a gargalhada
sumiu e deu lugar a uma testa firme e um olhar determinado. “Depois de muito
tempo vivendo um único papel ficamos cansadas” ela afirmou sem pestanejar. E
diante da minha inquietação prosseguiu “Se até um Papa pode cansar do seu papel
porque eu não posso? Quer saber, ser vítima esgota a gente! E é sobre isso que
quero falar, o cansar de ser a eterna vítima de uma história. Pergunto: quem são
os personagens mais chatos de uma novela?! As Mocinhas e os mocinhos, claro!
Ninguém aguenta a choradeira que não acaba e os problemas que nunca se
resolvem. Eu não me aguentei também. Sabe cheguei a uma simples conclusão: seguir
adiante é sempre uma questão de fé. Acreditar que tudo vai dar certo e seguir
sem saber aonde iremos é fé pura. Tudo o que sempre o que planejei
sobre isso, não alcancei. Queria ser invisível e olha aí; minha gargalhada,
meu tamanho e minha alma não deixam. Então porque não ser exatamente quem sou:
feliz, corajosa e determinada?! Bem melhor que vítima, certo?!” Suas perguntas
não pediam respostas e não me atrevi a revelar isso a ela.
“Nesse tempo que fiquei escondida,
fugi da intimidade, do compartilhamento e da alegria de construir vidas em
comum. Perdi tempo, abandonei pessoas, fugi de responsabilidades que eram
minhas e no fim o que me restou?! Apenas a mágoa. Resolvi retomar o resto e
abrir mão dela. É muito difícil saber o que é pior: ser vítima do que não
sabemos ou culpada de nossas escolhas. E eu tinha que fazer as minhas: viver ou
morrer? Afundar na dor do passado ou redescobrir meu melhor? Sinceramente não
quero ressuscitar ninguém, tampouco quero ressuscitar mágoas e dores que já
estão bem enterradas, quero apenas dizer que sei quem eu sou e o que fiz para
chegar aqui. Depois de tanto ser vítima, resolvi agir pra não me transformar em
algoz de mim mesma. Resolvi perdoar.” As perguntas pulavam na minha mente. “O caminho mais fácil?!” ela
retrucou soltando uma gargalhada. Eu não tive dúvidas de que tinha feito uma
pergunta imbecil.

Eu não tinha mais perguntas. Fiquei ali, parada, olhando-a
profundamente e ao final entendi tudo. Para além de toda a violência imposta (muito maior que apenas sexual), ela
escolheu viver. Aquela mulher sofreu abuso sexual por quase quinze anos, não
teve o apoio da família como queria. Por várias vezes encharcou-se de álcool,
água sanitária e desinfetante. Outras tantas vezes ela passou noites em claro
sentada na porta do quarto para que seu abusador não entrasse sorrateiro na
madrugada. Depois de tudo, viu o criminoso morrer antes de ter se arrependido.
Sentiu-se infinitamente culpada por um tempo que nem mesmo conseguia
contabilizar. Para fugir das dores ela fugiu de si mesma e só depois de muito
lutar resolveu romper um ciclo que parecia infinito e se libertar. Ainda falta
muito caminhar, mas ela não tem medo do caminho, nem das pedras que ele terá. Seu
único medo é não perdoar.
Para saber mais sobre violência contra
mulheres conheça a campanha “UNA-SE pelo fim da violência contra as Mulheres da ONU”.
[1] Dados
da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Nenhum comentário:
Postar um comentário